Quando se decidiu convocar a presente Assembleia fomos daqueles que considerámos, que mais do que consagração pública e institucional, se impunha como dever desta Assembleia refletir de forma propositiva e construtiva acerca das potencialidades, mas também dos enormes desafios e responsabilidades que a qualificação de património mundial acarreta para a cidade, para a região e para o país.
A cidade e a sua universidade ainda se encontram na fase de deslumbramento com a recente consagração da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, como património da Humanidade. É legítimo e natural o orgulho da cidade com a atribuição de tão alta distinção. Esta, traduz o reconhecimento não só do valor histórico-cultural do património arquitetónico e monumental, como também do legado de património imaterial, muito para além da canção de Coimbra, das tradições académicas institucionais e estudantis, consubstanciado no seu papel multissecular na formação humanista e investigação científica, desde tempos medievais.
Num momento que é de festa e propício a unanimismos, não queremos deixar de sublinhar as enormes responsabilidades que recaem sobre a Universidade e em especial sobre a Câmara Municipal de Coimbra, mas também sobre as estruturas de coordenação regional (Direção de Cultura Regional do Centro e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro) sem esquecer o poder central, que obrigam a equacionar, com caráter imperativo, a reabilitação e requalificação do centro histórico da cidade, com especial incidência na Alta e Sofia e nos seus espaços envolventes, doravante integrados na classificação de património da UNESCO. Relembramos aqui o espírito e a letra da nova Carta de Atenas assinada em Lisboa em 2003, sobre o urbanismo para o século XXI que reflete a preocupação com a necessidade de qualificação e de preservação das envolventes (art.6), considerando que um monumento é inseparável da história de que é testemunho e do meio em que está inserido.
Ora, a Universidade – Alta e Sofia foram consagradas património mundial como um todo que não pode ser desagregado e que nos impõe a todos – governo da universidade e da cidade, instituições políticas, económicas, sociais e culturais, cidadãos em geral – novas e complexas exigências, entre as quais destacamos como absolutamente prioritárias e inadiáveis a gigantesca tarefa de gizar um verdadeiro plano estratégico de reabilitação e requalificação dos centros históricos da cidade.
Nesta perspetiva pensamos que a atribuição pela UNESCO da qualificação de património mundial deve ser entendida não como um ponto de chegada, mas antes um ponto de partida. Constituindo-se como uma oportunidade soberana para a sua qualificação, tanto no plano local e urbanístico propriamente dito, como nos planos regional, nacional e internacional. O que impõe, para além da preservação e salvaguarda do património histórico da Universidade, a reabilitação das zonas adjacentes incluídas na zona de proteção. Tal, implica não só reabilitar o edificado, mas também densificá-lo, quer do ponto de vista habitacional, quer do ponto de vista da sua funcionalidade económica e social, da fruição de lazer e atividades culturais. Há que melhorar e facilitar os acessos quer para os residentes, quer para os visitantes. Transformar o centro histórico, tornando-o mais atrativo e em objeto de consumo turístico em si mesmo. Pois só assim será possível revivificar o centro da cidade retirando-o do coma induzido em que há muito se encontra.
Este desiderato impõe, antes de mais, uma concertação estratégica entre os principais atores políticos, económicos, sociais e culturais da cidade, o que implica envolvimento participado, diálogo, consenso e federação de sinergias em torno de uma causa comum e não de querelas partidárias. A forte exigência de captação dos necessários recursos financeiros, nacionais e europeus, impõe-se como um dos grandes desafios.
Entre muitos outros problemas, preocupam-nos em particular, a reabilitação da Baixa/ Rua da Sofia e a situação vivida pelas Repúblicas estudantis, enquanto comunidades singulares e marcas identitárias da cultura académica coimbrã que se encontram em risco de extinção e fizeram parte integrante da candidatura da Universidade a património mundial.
Quanto à rua da Sofia e envolvente, sem querer fazer a sua história, por todos bem conhecida, lembramos que foi aí que ao longo de 300 anos (1537-1834) funcionou, em grande parte, a universidade, onde fervilhou a vida científica, cultural e académica e foi crescendo a cidade. A extinção das ordens religiosas com o consequente encerramento dos vários colégios e a posterior alienação do seu património ditou o abandono e a progressiva decadência da rua da Sofia e da sua envolvente.
Sobre esta parte da cidade, em concreto, temos vindo a insistir, desde há muito, na necessidade de a reabilitar, restituindo-lhe não só a unidade morfológica que já outrora possuiu como também, nas palavras do arquiteto Alexandre Alves Costa, “reavaliar a sua relação com a cidade integrando-a na contemporaneidade e desenvolvendo o seu futuro”.
Em 1990 o professor José Eduardo Horta Correia, especialista em História da Arte e património cultural, afirmava em artigo na Via Latina, referindo-se à reabilitação da Rua da Sofia que “o restauro e adaptação a fins escolares deste conjunto original da nossa arquitetura académica constituiria por parte do estado português, a reparação possível ao atentado de lesa património cometido com a demolição da Alta nos fatídicos anos 40-50”.
Eis, pois, um projeto em que valia a pena apostar. Reabilitar e devolver os colégios da Sofia à sua matriz original, colocando-os ao serviço da comunidade académica e científica, dando-lhes uma utilização funcional adequada às características dos monumentos, de acordo com a orientação internacionalmente consagrada, desde 1933 na Carta de Atenas que estabelece as grandes linhas de orientação sobre o restauro urbano. Onde se defende igualmente que na gestão dos monumentos, considerados bens públicos, deve prevalecer a primazia do interesse coletivo sobre o privado.
Um bom exemplo do que acabamos de defender é a, há muito esperada, instalação do Centro de Documentação 25 de Abril no colégio da Graça.
Os colégios da Sofia precisam de ser devolvidos à vida e à cidade, reabilitando-os, reocupando-os e dando-lhes uma utilização funcional adequada. De outra forma estarão condenados a uma lenta caminhada para a sua inevitável degradação e inexorável decadência. Como se observa na Carta de Veneza de 1964, sobre conservação e restauro dos monumentos e sítios “ a conservação dos monumentos é sempre favorecida pela sua adaptação a uma função útil à sociedade (art.º 5).”
A segunda preocupação que enunciámos foi a que se prende com as Repúblicas. Já na anterior Assembleia abordámos este problema, que agora aproveitamos para reafirmar e quiçá contribuir para encontrar possíveis soluções.
As Repúblicas estudantis foram incluídas na candidatura a património mundial como fazendo parte integrante do património imaterial da Universidade. Independentemente de uma conceção, porventura mais tradicionalista e praxista, que não corresponderá inteiramente à realidade e diversidade destas comunidades estudantis, as Repúblicas não são apenas residências estudantis, mas antes constituem comunidades singulares, espaços identitários e societários de uma tradição académica de valor cultural e patrimonial a preservar. As Repúblicas não são apenas edifícios a preservar, eles encerram também conteúdo material, simbólico e até de alguma forma artístico, expresso, nomeadamente, nas inscrições, desenhos e pinturas gravadas nas suas paredes, por gerações sucessivas de repúblicos, fazendo parte da história e da cultura das Repúblicas. A vivência, a partilha, a solidariedade estudantil geradas nestas Repúblicas, bem como os símbolos e inscrições que encerram fazem parte de uma identidade que é preciso preservar e que não pode ser transportada para outros edifícios.
As Repúblicas encontram-se em sério risco de extinção em consequência da Lei das rendas implementada pelo atual governo, uma vez que equiparadas pela lei a micro/pequenas empresas foram abrangidas por um regime de transição de 5 anos para o novo regime de arrendamento urbano, que se esgotará em 2017, findo o qual os senhorios poderão denunciar os respetivos contratos e aumentar as rendas de 2 em 2 anos tornando inevitável o seu despejo na maior parte dos casos, se não todos.
Quer o governo central, quer o município têm mostrado insensibilidade ao problema específico das Repúblicas.
A potencial extinção das Repúblicas, algumas quase seculares, a concretizar-se, pode ser comparada, salvaguardadas as devidas distâncias de contexto histórico e proporções, à destruição da Alta, levada a cabo pelo Estado Novo salazarista nos anos 40-50. Em que não apenas foram destruídos os bairros, com as suas ruas e o edificado, mas também se destruiu toda uma vida coletiva, uma cultura popular e um modus vivendi tradicional. Perderam-se irremediavelmente tradições, costumes, modos de viver, espírito de bairro, cometeu-se um crime de lesa património histórico-cultural da cidade.
A nada ser feito que evite a extinção das Repúblicas, estaremos a pactuar com mais um crime de destruição de um património que faz parte integrante de um bem maior que acabou de ser classificado como património mundial pela UNESCO. Esta classificação atribui novas responsabilidades à universidade, ao município e ao governo no sentido de salvaguardar o património material e imaterial constituído pelas Repúblicas, enquanto espaços comunitários dotados de uma singularidade cultural académica que importa preservar, para além dos meros interesses especulativos dos interesses privados.
Impõe-se, pois encontrar uma solução, que pode passar pela compra dos edifícios, ou por uma lei de exceção que preserve e salvaguarde este património.
Coimbra, 24 de Julho de 2013
o deputado municipal do Bloco de Esquerda
Serafim Duarte