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Tempos de indignação

A autonomia do poder local foi uma das grandes novidades da democracia instaurada com o 25 de abril de 74 e tem sido publicamente celebrada tanto à esquerda como à direita do espetro político português. Instituiu práticas de participação democrática mais próximas das populações, criou um novo paradigma de desenvolvimento territorial descentralizado e extensivo a todo o espaço nacional, incluindo os Açores e a Madeira, aproximou os responsáveis políticos dos seus eleitores, enfim, abriu um caminho de realizações materiais e imateriais nas cidades, vilas e aldeias deste país, que em muito contribuíram para elevar os níveis de qualidade de vida dos portugueses, aproximando-os de padrões europeus que o regime salazarista lhes tinha negado.

Houve má gestão das prioridades, falta de transparência nas decisões, desmandos, abusos de poder, atentados ao bem comum, corrupção, benefícios pessoais e de clientelas, desperdício, enriquecimentos ilícitos? Todos ouvimos falar deles. Mas, para os conter e punir, foram criados os organismos de fiscalização, de controlo e de julgamento, político e/ou criminal, dos seus responsáveis. Tinham e têm obrigação de agir e, se não o fizeram ou se o fizeram de modo inconsequente, é a eles que temos que pedir contas e não ao poder local e aos seus titulares, em geral, designadamente aos que cumpriram a lei e que exerceram os seus mandatos com ética, com sentido de serviço público e dentro das regras da democracia. Os casos tornados públicos de desequilíbrios financeiros e de ultrapassagem, muitas vezes com marcas de arrogância, dos limites de endividamento previstos na lei, normalmente, foram tolerados pelo poder central e pelos sucessivos governos, nestes anos, evidentemente porque estavam interessados menos em servir as populações do que em aproveitar o seu voto nos escrutínios eleitorais. Uns tiveram decisões administrativas ou sentenças judiciais transitadas em julgado, outros nem tanto.

É ainda dentro desta cumplicidade, mais ou menos distante, com a má gestão da coisa pública, no âmbito local, que o governo decidiu, duma forma cega e sem distinguir a diversidade das situações, fazer cortes substanciais nas transferências do orçamento do estado para as autarquias e reter parcelas significativas das suas receitas próprias. E fê-lo, propositadamente de modo indiferenciado, quer às autarquias que cumpriram a lei e procederam de acordo com as boas práticas de governação, quer às que não o fizeram. O mesmo se diga relativamente à famigerada lei dos compromissos (n.º 8/2012, de 21 de fevereiro), que tem sufocado, desde há um ano, a atividade das autarquias e posto em causa a prestação de serviços públicos essenciais, como por exemplo os transportes e as refeições escolares. Em todos os casos, perante a opinião pública, os governantes justificaram esta atuação lançando a ideia vaga e difusa de que o dinheiro gasto localmente é necessariamente desperdício, incutindo no cidadão pouco informado o preconceito de que o controlo ministerial e central da despesa pública assegura automaticamente a sua racionalidade. Uma gigantesca fraude! Uma enorme burla política!

Convém, pois, perceber, desmontar e denunciar as intenções, confessadas ou simuladas, deste governo de destruir meticulosamente este edifício político e administrativo da autonomia do poder local, projetado pela Constituição de 1976 e erguido ao longo de quase quatro décadas, com muitos erros é certo, mas com o esforço dedicado e o entusiasmo de muitos que souberam conjugar a democracia com a eficiência e os direitos das populações com os orçamentos sempre limitados de que dispunham. Esta destruição está a ser feita programadamente por um conjunto de medidas legislativas, apresentadas sob o epíteto grandiloquente de ‘reformas estruturais’, tão ao gosto da por si venerada troika e dos seus paladinos neoliberais.

Este pacote legislativo, a seguir às medidas de natureza orçamental acima referidas, inclui a “sentença de morte” decretada contra 1165 freguesias, nas costas das populações e desprezando a vontade da generalidade dos autarcas, embora levada a cabo com a cumplicidade ou, pelo menos, a complacência de muitos que a criticaram. Primeiro com o Documento Verde, depois com a Lei n.º 22/2012, de 30 de maio e, mais recentemente, com a lei n.º 11-A/2013 de 28 de janeiro, a maioria parlamentar da coligação do PSD/CDS impôs, contra o voto de todas as restantes bancadas, a sua marca centralista e autoritária, própria duma direita que, sendo obrigada a viver em democracia, apostou na regressão histórica ao modelo de administração do período da ditadura. O mesmo se diga relativamente às alterações legislativas que estão a avançar relativamente às novas competências dos municípios e freguesias, muitas delas meramente decorativas, e também à governação das Áreas Metropolitanas e das Comunidades Intermunicipais que visam reduzir os mecanismos de controlo democrático dos órgãos deliberativos, em especial das Assembleias Municipais, isolando e afastando ainda mais as populações e os eleitos locais dos centros de decisão.

A nova legislação, em debate na Assembleia da República, sobre o regime de financiamento autárquico, no seguimento do PAEL, vem apertar o garrote financeiro imposto às autarquias e põe em causa a autonomia local, visando obrigá-las a exercer uma sobrecarga fiscal das populações através da fixação de taxas mais elevadas do IMI e doutros impostos, bem como do aumento exponencial das tarifas de água, saneamento, resíduos e transportes municipais, a que não é alheia a orientação governamental para a sua privatização. Sendo o Bloco de Esquerda, genericamente, contra a existência de empresas municipais – devendo, na maior parte dos casos, integrar-se na orgânica dos serviços camarários, de modo a poderem ser devidamente escrutinados pelos órgãos democráticos locais – considera que não pode ficar impune a gestão danosa ou, pelo menos, descuidada de muitas delas, bem como a sucessiva desresponsabilização do Estado pela sua viabilização, tendo em conta que os serviços que prestam às populações são inerentes às condições básicas de vida e se incluem nos direitos humanos fundamentais. Nestes tempos de empobrecimento de largos setores da população, devido ao desemprego galopante, à redução de salários e pensões, à instabilidade laboral e à nova lei do arrendamento, que fazem disparar as situações de insolvência e de pobreza extrema que batem diariamente à porta das famílias, são as autarquias o último reduto para garantir esses direitos. Por exemplo, as pessoas não podem ser privadas do acesso ao consumo de água – os mínimos de sobrevivência estão fixados pelas organizações internacionais – só porque não têm meios para os pagar. Isto só pode ser assegurado por serviços públicos, sob controlo democrático, e não faz qualquer sentido serem geridos pelos critérios habituais do mercado.

Falamos, pois, de autonomia do poder local e entendemos que o seu reforço está indissoluvelmente ligado ao exercício dos direitos fundamentais fixados internacionalmente. Restringir as suas competências, reduzir as suas margens financeiras, retirar-lhes o controlo democrático, inviabilizar a sua ação junto das populações é atentar contra os direitos humanos e pôr em causa a legitimidade constitucional que a fundou.

Neste contexto, faz todo o sentido recordar aqui Stéphane Hessel, falecido esta noite, com 95 anos. Hessel nasceu alemão, em Berlim, em 1917, numa família de ascendência judaica e naturalizou-se francês 20 anos depois, integrando-se na resistência contra a ocupação nazi da França. Foi preso pela Gestapo e enviado para o campo de concentração de Buchenwald. Conseguiu evadir-se e, após a rendição do exército nazi, nas suas funções de diplomata francês, desenvolveu uma intensa atividade em favor das causas humanitárias, dos direitos humanos e da reconstrução e reconfiguração da Europa. Participou no grupo de personalidades dos vários continentes que redigiu a declaração universal dos direitos humanos, aprovada pela ONU em 10 de dezembro de 1948. Foi o seu último redator vivo. Em 2010, lançou um livro que teve um enorme sucesso internacional ‘Indignez-vous!’. Pequeno em tamanho mas fortíssimo na sua mensagem e no testemunho de vida que evoca, ele tem sido uma bandeira viva nas lutas contra a desregulação económica e financeira que tanta injustiça e pobreza têm produzido à escala global. O seu compromisso com uma Europa mais solidária e com uma prática política baseada em princípios democráticos e socialistas fez dele uma referência para todos os que continuam a combater por uma sociedade mais livre e mais justa. Defendeu ‘uma insurreição pacífica’.

Que nos fique o seu exemplo de coerência entre o discurso e a prática política, até como forma de os reabilitar. Se continuarmos a assistir a um enorme desfasamento entre o que se diz localmente e o que se vota no parlamento, entre o que se afirma na oposição e o que se pratica enquanto governo, não nos podemos queixar do descrédito da política e de resultados eleitorais que muitos não esperavam, na medida em que tornam mais difíceis soluções de governação, como sucedeu neste fim de semana na Itália. É tempo de nos indignarmos, de sermos exigentes com quem nos governa e com quem aspira a fazê-lo, de enveredarmos por outros caminhos, de modo a construirmos um futuro menos sombrio e muito mais promissor.

Coimbra, 27 de fevereiro de 2013

José João Lucas

deputado municipal do Bloco de Esquerda