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Tempo de iniquidade

Os últimos dias têm sido esclarecedores. O governo, que ainda não completou dois anos, viu, por duas vezes, chumbadas pelo Tribunal Constitucional algumas das suas cláusulas orçamentais mais emblemáticas. Por razões óbvias: feriam o princípio da igualdade, discriminando e penalizando os trabalhadores do setor público e todos os reformados, relativamente aos trabalhadores no ativo das empresas privadas e, sobretudo, a detentores de outros rendimentos. Para o governo, tratar-se-ia dum simples corte na [sua] despesa. Outras medidas, como o brutal aumento de impostos, acrescidos da contribuição extraordinária de solidariedade para os reformados e pensionistas – claramente ilegítimas, embora não declaradas inconstitucionais – permanecem como marcas dum governo que sempre disse que tinha como bandeira política o não aumento de impostos. Lembremos as declarações inflamadas do ‘partido do contribuinte’ e as profissões de fé do PSD, em período pré-eleitoral, atirando para os outros governos, passados ou futuros, a responsabilidade do aumento da carga tributária. Acrescentavam que o quadro programático da direita e do liberalismo que professam era contra isso. O que aconteceu, em tão pouco tempo, quer nos referidos impostos diretos, quer nos indiretos, de que se destaca o IVA, nomeadamente no setor da restauração, revela que a falta de vergonha dos detentores da governação não tem limites.

Pouco lhes importam as insolvências de dezenas de milhar de empresas e de particulares, à razão de 50 por dia, em 2012, com um aumento de 41% relativamente ao ano anterior e que, no primeiro trimestre de 2013, já ultrapassam em muito as 4 000. O desemprego oficial chega, este ano, aos 19%. A recessão aprofunda-se. Dois terços dos que ficaram sem trabalho não têm subsídio de desemprego. O número de casais desempregados duplicou para 13 mil em apenas um ano. Em muitas empresas, impõem-se salários cada vez mais baixos e horários de trabalho inaceitáveis. Muitas famílias já não conseguem pagar as dívidas ao banco. Algumas perdem a casa e continuam endividadas. Por todo o país, muitas famílias já vivem sem acesso a água, eletricidade e gás, por falta de pagamento. O desemprego galopante, o aumento nunca visto dos impostos e a redução brutal dos rendimentos do trabalho e das reformas são o resultado da política dum governo que ainda se prepara para prosseguir na sua ação destruidora do estado social, corroendo, de forma dificilmente reparável, a coesão da sociedade. A irresponsabilidade de quem nos governa não tem limites.

Não nos esqueçamos que, para levar a efeito esta megaoperação de transferência bilionária de rendimentos dos cidadãos para a finança que tem especulado com a dívida soberana, o governo se apoiou, de forma seguidista e cúmplice, nos ditames do governo alemão, da cúpula da União Europeia e da banca internacional. Hipocritamente, dentro da galáxia dos responsáveis pela crise, surgem aqui e ali, lá fora e cá dentro, declarações vagamente críticas das políticas de austeridade, logo a seguir remendadas por correções ou desmentidos que visam deixar tudo na mesma. Internamente, o governo quis segmentar a sociedade portuguesa, cavando divisões entre os trabalhadores do setor público, incluindo o empresarial, e os do setor privado, entre os trabalhadores no ativo e os reformados, entre os que têm rendimentos legítimos acima e abaixo de valores salariais que estabeleceu para criar uma fronteira entre eles. A intenção foi pretender legitimar esta espoliação, junto das camadas da população que, em cada caso, ficaram de fora, tornando as restantes responsáveis pela crise que atravessamos. As críticas recentes do primeiro-ministro ao Tribunal Constitucional, que não deixou passar as medidas dirigidas aos trabalhadores do setor público e aos reformados, para além de visarem aquele órgão, pretendem ainda, perante a sociedade, fazer carregar sobre estes grupos de cidadãos o fardo odioso das medidas que se preparam para anunciar no conselho de ministros de amanhã, se, entretanto, por dissensões internas, a sustentação do governo não ficar abalada. A desfaçatez, seguramente, não tem limites.

Entretanto, a dívida portuguesa aumenta quase 2 mil milhões de euros por mês. Mais endividados e mais pobres, é o resultado desta política sem sentido, relativamente à qual alguns, da área política do governo, arriscam balbuciar algumas críticas. Mas, infelizmente, nada se passa.

O Bloco de Esquerda, juntamente com outras forças sociais e políticas, já vem denunciando este descalabro social, provocado pela especulação interna e externa sobre a dívida, desde a assinatura do memorando com a troika. Muitos dos que sorriam de sobranceria e que nos apelidavam de irresponsáveis, vêm agora timidamente propor renegociações. Contudo, dum modo geral, mantêm-se prisioneiros dos dogmas da libertinagem bancária, da intocabilidade dos mercados ou da ausência de alternativas.

Sem prejuízo desta denúncia estrutural, o Bloco de Esquerda, atendendo às situações de evidente de emergência social, aprovou recentemente, para propor aos governantes, um conjunto de medidas essenciais contra a fome e a miséria, que simultaneamente estimulem a economia e sejam socialmente justas. Destaco:

  1. Subsídio social de desemprego para os desempregados sem apoio;

  2. Atualização do salário mínimo para 533€;

  3. Moratória das prestações dos empréstimos à habitação para os desempregados sem subsídio de desemprego;

  4. Proibição do corte da água e energia às famílias em comprovada situação de pobreza;

  5. Aumento extraordinário de 15 euros das pensões mínimas;

  6. Comparticipação a 100% dos medicamentos receitados a beneficiários do RSI, desempregados sem apoio e idosos com pensão mínima;

  7. Aumento dos apoios e das bolsas escolares no secundário e no superior;

  8. Reposição do passe social para idosos e jovens estudantes e extensão a todos os centros urbanos;

  9. Reforço do apoio alimentar nas escolas.

Se algumas destas medidas dependem da decisão do estado central, outras, como aqui temos vindo a defender, poderão inserir-se em políticas locais de apoio social, da iniciativa da Câmara Municipal.

Termino, contando um episódio que se passou recentemente na nossa cidade. Numa escola secundária, surpreendentemente, entrou há dias um conjunto de agentes da autoridade. Qual o seu mandato? Identificar e, eventualmente, iniciar um processo contra uma funcionária do refeitório que, após concluir o serviço de refeições, tinha retirado do excedente – que se destina, segundo as regras em vigor, ao lixo – um bocado de comida que guardara num tupperware. Alguém, zeloso, viu e denunciou. As consequências do episódio para a pessoa em causa não as conheço, mas não terão sido, certamente, fáceis de suportar.

Nestes tempos dramáticos de emergência social e depois de sabermos que a iniciativa ‘Desperdício zero’, recentemente lançada em concelhos da área metropolitana de Lisboa, com a colaboração de muitos restaurantes, teve repercussões internacionais, designadamente junto da FAO, não seria justo, racional e viável, que, nas cantinas escolares, se organizassem doses com a comida excedentária para que os alunos mais carenciados pudessem levá-las para casa, satisfazendo necessidades humanas básicas e evitando que essas sobras se tornem invariavelmente desperdício? Ou continuamos a assobiar para o ar?

Como em muitas outras situações, cinismo, injustiça e irracionalidade vão caminhando juntas.

Coimbra, 29 de Abril de 2013

José João Lucas, deputado municipal do Bloco de Esquerda