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Umas eleições especiais

Na história recente de Portugal, não me recordo de outras eleições feitas sob um clima de chantagem e de mentira tão descarado. Vimos o que se passou com a Grécia – como as instituições europeias tentaram condicionar a vontade popular e mesmo subjugá-la, depois de esta ter sido expressa de forma clara e democrática. Vemos agora, em Portugal, como o Presidente da República nos vem dizer em quem devemos votar e como o actual Primeiro Ministro nos vem dizer que “a oposição é precisa, mas não para governar”.

Perante os efeitos das políticas que tem levado a cabo, o Governo responde que são inevitáveis e que a culpa é nossa – dos funcionários públicos, dos trabalhadores por conta de outrem, dos reformados e dos pensionistas, dos pequenos e médios empresários, dos estudantes, até dos desempregados. Vivemos todos acima das nossas possibilidades. E continuamos vivendo, insistem, quando propõem mais cortes, menos serviços públicos, mais facilidades nos despedimentos.
Sabemos que não é assim. A cada um dos desastres sociais provocados pela austeridade corresponde o florescimento dos lucros de alguns. Empresas como a Sonae, por exemplo, anunciam lucros que não param de crescer mas mantêm os salários dos seus trabalhadores em níveis mínimos. A empresas como esta interessa que o desemprego cresça: quanto mais gente a precisar de emprego, menos terão de pagar. Veja-se o quanto cresceu o mercado das clínicas privadas e perceber-se-á a quem interessa o desinvestimento público na saúde. Veja-se o aumento das turmas em colégios privados com contratos de associação e perceber-se-á quem ganha com a destruição da escola pública.
Não se trata de falta de recursos. Trata-se de uma política deliberada de transferência de recursos. Daquilo que é de todos e que deveria ser aplicado no interesse colectivo para os bolsos de uns poucos, que não param de enriquecer – que não pararam de enriquecer enquanto o país empobrecia.
Temos hoje um país muito mais desigual e injusto do que tínhamos há quatro, há seis ou há oito anos atrás. Sentimo-lo no emprego, na saúde, na educação, nos transportes públicos, no acesso a bens essenciais como a energia e a água, no gravíssimo aumento da pobreza.

Entre as tão mal-tratadas políticas sociais está também a cultura. Entre 2009 e 2013, os apoios da Direcção-Geral das Artes caíram 41%. Na Região Centro essa quebra foi ainda mais grave, chegando praticamente aos 50%. Na globalidade, o investimento em cultura em 2015 representou 0,1% do Orçamento Geral do Estado, algo que o próprio Secretário de Estado da Cultura admitiu em Abril representar “o orçamento mais baixo de sempre”. Os efeitos são desastrosos: companhias a fechar, muita gente a emigrar ou a mudar de vida, teatros que nos custaram muito a construir fechados ou a funcionar a meio gás, cinema português parado ou financiado por governos estrangeiros, bibliotecas e centros de documentação estagnados, museus públicos a disfarçar a falta de recursos explorando estagiários e desempregados. Pior do que tudo: uma geração inteira de gente nova que é incentivada a não ser artista porque, pura e simplesmente, essa não é uma profissão viável neste país.
É possível uma outra política. Definir uma percentagem mínima do orçamento para investir na cultura (1%); entender a cultura como um bem público essencial e disso retirar consequências, por exemplo ao nível da fiscalidade; promover uma efectiva articulação entre cultura e educação e o ensino artístico na escola pública. Uma outra política que vá ao encontro do que a Constituição prevê: o direito universal à criação e à fruição artística, tendo em conta o contributo fundamental das artes para a consolidação de uma sociedade mais culta, mais aberta e cosmopolita, mais justa e solidária, mais feliz.

A lista do Bloco de Esquerda é encabeçada por José Manuel Pureza. Sabemos o que fez na sua curta passagem pela Assembleia da República. Lembramo-nos da diferença que fez a sua voz quando denunciou o que se passava com o Metro Mondego, quando desmascarou o deficit democrático do Tratado de Lisboa ou quando recusou branquear a responsabilidade de Israel nos crimes contra a humanidade em Gaza.
Na defesa activa da paz, nos combates pelo direito à cultura, na militância feminista, nas lutas pelos direitos das minorias, na persistente construção de uma esquerda diversa mas unida no essencial, há uma palavra que define o foco do trajecto pessoal e político do nosso cabeça de lista: humanidade – um profundo gosto e um profundo respeito pela humanidade. Precisamente aquilo que tão dramaticamente tem faltado à governação, em Portugal e no resto da Europa.
Pureza encabeça uma lista de nove mulheres e homens com trabalho feito nos órgãos para os quais foram eleitos -  Assembleias de Freguesia, Assembleias Municipais, Executivos Municipais – e em muitos outros fóruns de intervenção cívica e política. Na defesa do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública, do direito à Cultura, da transparência na gestão das autarquias, no acesso universal aos bens e serviços essenciais à dignidade humana, estas candidatas e estes candidatos têm-se destacado pela coragem, pela frontalidade, pela forma radical e persistente com que denunciam e combatem quer os interesses instalados e as injustiças, quer a resignação de quem acha que não há nada a fazer.

A propósito dos jovens que foram e continuam presos em Angola por terem organizado uma manifestação pacífica, a cantora Aline Frazão escreveu há dias numa crónica:

Neste exacto momento em que nos juntamos, em que respiramos juntos, em que juntamos vozes e forças, é importante não esquecer que o caminho é longo. Se hoje evocamos a palavra “Liberdade” é por pura necessidade. É porque, ao exigirmos Igualdade nos ameaçaram com retirar-nos a Liberdade. Não é, pois, a Liberdade que lhes mete medo. É, precisamente, a Igualdade de direitos e de oportunidades aquilo que nos têm negado de forma rotunda. E essa é a nossa meta. Só quando lá chegarmos se cumprirá este país.
Aline escrevia sobre Angola, mas é disto que se trata também aqui, hoje e sempre: igualdade de direitos e oportunidades. Sem ela, a democracia não passa de uma formalidade politicamente correcta, sem conteúdo. E que, por isso mesmo, pode ser esquecida ou abandonada a qualquer momento.
Recuperar o que é nosso, 40 anos depois do 25 de Abril, é muito mais do que recuperar os direitos sociais que nos foram roubados. É recuperar a exigência de vivermos num país em que o povo é, realmente, quem mais ordena.
Por isso são tão especiais estas eleições, por isso é tão motivante fazer esta luta.

[versão resumida da intervenção feita na apresentação pública do Mandatário Distrital de Coimbra da lista do Bloco de Esquerda às eleições legislativas de 2015; versão completa aqui: http://coimbra.bloco.org/30-julho-intervencao-de-pedro-rodrigues/1128]