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Uma prenda para a islamofobia

Foi uma perda humana, é e será um duro golpe contra a democracia. Entre as vítimas encontram-se caricaturistas que têm sido implacáveis na crítica à sociedade e ao mundo político francês. Nenhum quadrante político, nenhuma intervenção militar externa, nenhuma figura pública escapou ao seu olhar perspicaz e irónico.
Uma triste coincidência fez com que o atentado sangrento contra o jornal satírico Charlie Hebdo coincidisse com o lançamento do polémico romance de Houellebecq Soumission, que nos conta como, em 2022, o candidato de um partido muçulmano vence a candidata da extrema-direita na segunda volta das presidenciais francesas com o apoio dos partidos de centro-direita e centro-esquerda. É uma ficção, pois claro! Os tempos que se aproximam serão mais “Muçulmanos, cuidem-se!”
Numa altura em que a islamofobia contribui decisivamente para o crescimento da extrema-direita por toda a Europa, quando em França Marine Le Pen se afirma cada vez mais como a alternativa a uma governação socialista desastrada e a um partido conservador enredado em escândalos de corrupção, o atentado de hoje é o presente ideal na hora certa para todos os pirómanos do continente.
Na próxima manifestação PEGIDA lá teremos os mortos de hoje erguidos a símbolos de vítimas de um Islão papão a pairar sobre o Ocidente. Em cada debate e discussão sobre xenofobia e racismo na Nova Europa, os nomes dos caricaturistas assassinados serão atirados para justificar a exclusão e a discriminação.
Contra isto pouco poderão as declarações de condenação do atentado por parte de líderes religiosos e membros da comunidade muçulmana. De pouco servirão os discursos de Hollande, Merkel e Cameron a repetir o refrão habitual de que a maioria dos muçulmanos é gente de paz, assim assumindo um inconsciente coletivo que identifica automaticamente Islão a terrorismo. Serão tempos difíceis para discutir a ingerência externa no Médio Oriente.
Será uma tarefa árdua lutar contra a islamofobia e discutir o terrorismo islâmico como problema político. Questões como a emancipação feminina, os direitos humanos, a liberdade de imprensa serão instrumentalizados cada vez mais como arma de retórica na promoção da exclusão. Abusos policiais, políticas de discriminação, estado de exceção, vigilância e atropelos à privacidade serão cada vez mais tolerados como pequenos delitos frente a um inimigo tão bárbaro. E esquecemo-nos que é sempre assim que começa.