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O travo

Há um travo de Estado Novo no discurso do Governo e isso é indisfarçável. Não, não é o regresso ao fascismo. Não precisa de o ser. Porque é um claro desdém da democracia com a cobertura da própria democracia.
Primeiro foi o “saiam da vossa zona de conforto” – “bazem”, na fórmula certeira do José Soeiro há dias no parlamento – e o incitamento à emigração para ver se as coisas por cá podem respirar sem tanta gente a criar problemas. Porque quanto mais gente, mais problemas. Houve nisso um regresso evidente ao Portugal dos anos sessenta pela semelhança de abordagens políticas e sociais com que a emigração foi dita pelos governantes, estilo “aqui não dá, não vai dar, tentem lá fora, pode ser que dê”. Os programas diários com que a rádio e a  televisão públicas fazem a apologia dos “casos de sucesso” de emigrantes – sobretudo jovens – criam depois a cultura social de aceitação do que devia ser, desde o princípio, inaceitável.
Sobre isto caiu depois a ode aos “cofres cheios”. A um país esbofeteado pela austeridade, a tanta gente cujas vidas perderem outro sentido que não seja a sobrevivência e a pilotagem à vista, a frase orgulhosa da governante só pode soar a ofensa gratuita. Tal como no Estado Novo, as contas de mercearia do tesouro do palácio têm como preço a desesperança das vidas do povoado. E o orgulho da governante é tanto mais indigno quanto promete que o acesso aos cofres cheios será seletivo: chegar-lhes-ão os que sempre ganham, enquanto aqueles a quem foi tirado o pouco que tinham para que os cofres do palácio se enchessem não terão a mínima recompensa.
Insisto: há nisto um óbvio travo de Estado Novo. O contexto é diferente? Depende do que considerarmos como contexto. Porque o nosso é de novo um tempo em que a democracia é cada vez mais referenciada publicamente por quem manda como um obstáculo ao cumprimento do que nos dizem que realmente conta: a satisfação dos mercados. O nosso é de novo um tempo em que a gente do palácio governa proclamando “que se lixem as eleições”.
O que precisamos de fazer é criar condições para que a imensa e profunda indignação causada por este travo de Estado Novo se exprima em força política com suporte democrático para lhe pôr fim. Essa é a nossa responsabilidade.