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O que diz Centeno

Misturando, em doses bem medidas, ilusão política sem chão e resignação sem alma ao que está, Centeno antecipa com essa mistura o que se pode e não pode esperar de um Governo do PS.
Assumido putativo membro de um futuro governo do PS, Mário Centeno, coordenador do grupo de economistas que elaborou o cenário macroeconómico que servirá de base a uma eventual governação desse partido, deu uma importante entrevista ao Público. Misturando, em doses bem medidas, ilusão política sem chão e resignação sem alma ao que está, Centeno antecipa com essa mistura o que se pode e não pode esperar de um Governo do PS.
Em primeiro lugar, poderemos ter a certeza de que o receio de António Costa de lhe baterem com a porta na cara se fosse a Bruxelas ou a Berlim falar de reestruturação da dívida não tem razão de ser. Centeno, para quem “a redução sustentada da dívida acontece (…) por geração de saldos primários positivos e por crescimento económico” deixa claro que “não há nenhuma pré-condição de que precisamos de um exercício dessa natureza (renegociação da dívida) para aplicar o nosso programa”. Nem falar em renegociação da dívida, portanto.
Nada de “aventureirismos”, diz Centeno, apologista confesso de que Portugal tenha perante os credores “uma posição responsável”. “E a posição responsável –acrescenta para que não restem dúvidas – é dizer: nós temos aqui estas dificuldades, propomos estas medidas para crescer e para criar emprego. Acreditamos que apenas isso poderá no futuro garantir o pagamento da dívida e, portanto, queremos que confiem em nós.” Ora aí está: como se viu na tragédia grega, Schäuble, os Verdadeiros Finlandeses e o diretório de seis de Hollande são poços de filantropia, marcos da solidariedade, referenciais do diálogo compreensivo, pilares da confiança nos outros. E não deixarão por isso de ser sensíveis ao programa traçado por Centeno para mudar a relação de forças entre os poderes coloniais europeus e Lisboa: “imagino que vamos ter conversas”, diz o economista. Todos imaginamos. E até já podemos vaticinar o que delas vai resultar. Porque Centeno, justiça lhe seja, é claro: “o caminho que temos de percorrer é estreito, que segue regras que não pomos em causa e que, ao não as pormos em causa, queremos tirar partido disso para tornar plena a cidadania europeia dos portugueses.” Pois.
A amarra às “regras europeias” que Centeno reitera é a que lhe serve de suporte para defender o contrato de trabalho único e o “processo conciliatório de cessação do mercado de trabalho”, modelo que vai buscar à Alemanha de Schroeder e à Itália de Renzi, com os resultados – medidos em despedimentos – que estão aí à vista de todos. Nisto, Passos Coelho tem razão: há propostas programáticas do PS que nem ele subscreve por serem demasiadamente liberais… Porque é claro que a alternativa de Centeno à consideração dos contratos a prazo como despedimentos a prazo não é o reforço da segurança do trabalhador mas sim a irrelevância do termo do contrato para que haja despedimento. Basta que haja conciliação. Vamos ter conversas, portanto. Elas bastam para que haja despedimento. Ou seja, basta que haja negócio. Ou seja, basta que haja chantagem. Ou seja, basta que se cumpra a lei do mais forte. É de truque desajeitado que se trata: a crítica dos contratos a prazo terá como alternativa a flexibilização dos despedimentos e a acentuação da precariedade.
Centeno confia que, como contrapartida, a redução da TSU para as empresas permitirá que gradualmente “os agentes económicos se ajustem, criando espaço fiscal, neste caso, para a realização de investimento e para a contratação de trabalhadores.” De duas, três: ou Mário Centeno não conhece a cultura empresarial prevalecente em Portugal; ou está, pura e simplesmente, a “atirar bolas para o pinhal”, como costumava dizer o Miguel Portas; ou, pior que tudo, está a antecipar a radicalização da política do atual Governo, com mais e mais bónus fiscais ao capital.
Vamos ter conversas. Ai vamos, vamos.