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Ó menina, eu cá sempre fui do Benfica!

Os resultados das eleições de 4 de Outubro, a perda de maioria absoluta por parte da coligação PSD-CDS/PP (sob o disfarce de PAF) e o processo de negociações à esquerda que se seguiu, no sentido da formação de um governo de esquerda, marcam um ponto de viragem na história da democracia em Portugal.

Esta viragem terá como explicação primeira o grau de empobrecimento do país e de degradação das condições de vida das portuguesas e dos portugueses a que conduziu a política do governo de direita, o aluno mais obediente que a troika e os mercados financeiros conseguiriam encontrar, pronto a afrontar qualquer resquício de interesse nacional ou qualquer noção de direito (inclusive a constituição) na cegueira desta obediência. Descemos tão fundo, afinal, que era impossível não dizer “não” a um rumo que só levaria ao abismo, mesmo por parte de um povo dito de “brandos costumes” e que, como continua a demonstrar a abstenção, se encontra ainda afastado da política e da participação na vida democrática.

Esse “não” que se impunha abriu o olhar das eleitoras e dos eleitores, ao fim de 40 anos de democracia, para o conceito de alternativa – por oposição ao de alternância, ao de voto útil e ao de fidelidades partidárias, mesmo que informais, de cariz “clubístico”. Na conceção do sistema democrático português, que nos foi vendida ao longo de 40 anos, e que continuou a revelar-se na análise dos resultados das eleições legislativas, fala-se em vitórias e derrotas, em protagonistas, faz-se passar a eleição de deputadas e deputados pela eleição de um primeiro-ministro, considera-se, para essa eleição, apenas duas possibilidades em rotatividade e pouco se fala em política – aquela que, afinal, a todas e a todos diz respeito na medida em que molda as nossas vidas.

As eleições de 4 de Outubro mudaram este estado de coisas. O um milhão de portuguesas e portugueses que votaram no Bloco de Esquerda e na CDU acrescentaram ao “não”, que inevitavelmente se impunha à direita, limites muito fortes à noção de alternância e uma afirmação inequívoca no sentido da alternativa – uma alternativa à esquerda. Perante os resultados obtidos pelos partidos à esquerda do PS, em particular do Bloco de Esquerda, que passou a terceira força política nacional, e perante a posição prontamente assumida por estes partidos no sentido da necessidade de resgatar o país dos desmandos da direita, respondendo à responsabilidade que lhes era atribuída pelas eleitoras e pelos eleitores, o PS percebeu que ou estava, também ele, à altura dessa responsabilidade, ou sucumbiria, como aconteceu (e pode acontecer) a outros partidos congéneres em outros países europeus.

A possibilidade de substituir a lógica “clubística” por uma leitura política da expressão eleitoral da vontade das portuguesas e dos portugueses resultou – e bem – num processo histórico de negociação de um acordo para um governo de esquerda. A possibilidade desta inversão nas lógicas que a direita tão rapidamente defendeu como “tradição” tem constituído, em si mesma, um processo de aprendizagem e de crescimento na democracia que se verifica no debate político que começou a desenrolar-se pelo país, entre os portugueses e as portuguesas que, de outra maneira, jamais incluiriam a política nos seus temas de conversa. A esperança cada vez mais vasta numa mudança em que se tinha deixado de crer renasceu com uma força que, sim, faz regressar ambientes de Abril, não somente nas fantasmagorias do PREC que uma direita derrotada tem evocado em desespero de causa, mas sobretudo como uma nova confiança na democracia, numa soberania da qual o “povo” se reapropria. Hoje, em Portugal, discute-se política. Nos locais de trabalho, nos cafés, nas ruas, programas e medidas políticas concretas adquirem substância nas discussões e a proximidade da transformação aproxima, por sua vez, as cidadãs e os cidadãos da política que interessa: a que diz respeito aos direitos de trabalhadores e pensionistas, à fiscalidade, à sustentabilidade dos serviços públicos, às privatizações, aos grandes negócios, aos poderes externos, em relação aos quais surge a possibilidade de não ser tão obediente, se o interesse do país for colocado em primeiro lugar.

Com as eleições de dia 4, crescemos já em democracia. Nada ficará igual na maneira de se fazer política em Portugal. Daqui a poucos dias, a rejeição do governo direita empossado por Cavaco Silva depois de um discurso de indigitação que escandalizou o país, e a apresentação de um acordo consolidado de governo à esquerda transformará definitivamente o estado de coisas. Com as garantias públicas, já apresentadas a partir das condições colocadas pelo BE desde a pré-campanha eleitoral, de que será travado o ciclo de empobrecimento do país, de que as pensões não sofrerão mais cortes e de que não haverá mais queda, mas sim recuperação, nos rendimentos do trabalho, o governo que se anuncia fará uma diferença que mudará de forma muito concreta as condições de vida em Portugal. Não é um processo fácil, mas é possível. E compreender-se-á que a política não é um terreno de disputas futebolísticas, mas um domínio no qual, com a participação das cidadãs e dos cidadãos, se deve e pode agir com a ética da responsabilidade e do serviço do interesse público. A esperança junta-se, assim, a um grau de exigência que, também ela, transformará a política e obrigará à responsabilização e prestação de contas por parte de quem assumiu o desafio de um rumo novo e que sabe que não pode defraudar as expetativas suscitadas. A vida das portuguesas e dos portugueses vai mudar. E certamente que não se tornará a votar sempre num qualquer Benfica.