Share |

No Mediterrâneo, a crise da Europa

Que crise é esta que se exprime na morte de perto de 25 mil pessoas que, nas últimas duas décadas, tentaram atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa? As duas designações mais comuns - "crise do Mediterrâneo" e "crise dos refugiados" - ocultam o essencial: a crise é da Europa. A Europa que rotula como ameaça quem busca nela segurança e dignidade é um ator incapaz de aceitar o repto de ser campo de direitos e que mostra no Mediterrâneo o mesmo autoritarismo que mostra às suas periferias internas: austeridade para dentro, blindagem de fronteiras para fora. A obsessão securitária com que a Europa encara quem lhe bate à porta é um sinal de imensa fraqueza e de uma crise profunda. Por Marisa Matias e José Manuel Pureza.
As recentes decisões do Conselho Europeu em face das mortes em catadupa no Mediterrâneo revelam o que é esta deriva autoritária. Alheada das suas responsabilidades no colapso da mínima réstia de Estado na Líbia ou na Síria, a União Europeia (UE) encheu-se de brios contra as redes de tráfico de pessoas que aproveitaram aquela destruição para atuarem sem freios. Os media pintaram a coisa como um arremedo de humanitarismo de Bruxelas: em vez da duplicação anunciada, triplicou os fundos relativos ao programa Tritão. A verdade, porém, é que os 28 governos juntos não conseguiram sequer igualar o financiamento por um só país (a Itália) do programa de busca e salvamento Mare Nostrum, que vigorou um ano e que foi suspenso por pressão da UE. Acresce que o programa Tritão se insere na agência Frontex, criada para patrulhar as costas europeias e reenviar para a origem quem é encontrado, muito longe, portanto, de qualquer mandato de busca ou salvamento e sem um pingo de humanitarismo. A resposta europeia às mortes no Mediterrâneo não terá, pois, como prioridade salvar vidas, mas securitizar as fronteiras a sul. À desumanidade de governos como o britânico - para quem um investimento sério no salvamento dos náufragos seria um sinal errado dado aos migrantes que estimularia mais fluxos rumo à Europa - a União Europeia reagiu com obediente assentimento: polícia e devoluções à procedência serão ainda mais o rosto do europeísmo no Mediterrâneo.
A deriva autoritária europeia não para sequer à porta da vergonha própria. Num alegado segundo arremedo de generosidade humanitária, a UE anunciou um programa-piloto de acolhimento de 5000 refugiados. Vergonha: só o Líbano, a Jordânia e a Turquia acolhem hoje mais de 3,6 milhões de refugiados sírios. Numa cedência inquietante às teses da extrema-direita, a prioridade ao acolhimento foi substituída na UE pela prioridade à securitização.
A blindagem e o autoritarismo são as marcas da crise da Europa. Onde prevalece o traço autoritário de decidir o que são motivações aceitáveis e motivações não aceitáveis para que quem foge à guerra ou à pobreza atravesse o mar, devia prevalecer o entendimento da migração como um direito de todas as pessoas. Uma Europa que multiplica discursos sobre direitos humanos para legitimar o seu envolvimento em sucessivas guerras e que é incapaz de pôr a defesa dos direitos humanos dos migrantes em primeiro lugar é uma Europa ácida e perdida a olhar para si própria. O que está hoje em jogo no Mediterrâneo é o choque entre o autoritarismo e os direitos, entre uma política de morte e uma política de vida.

* Publicado em:
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4549299&seccao=Convidados