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A água é um bem público – não é negócio para ninguém

Tem sido unânime, por parte de todas as forças políticas de Coimbra, a recusa da intenção do governo de agregar a empresa Águas do Mondego (AM), responsável pelo Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais do Baixo Mondego-Bairrada, com as congéneres SimLis (Leiria) e SimRia (Aveiro). O Presidente da Câmara de Coimbra e Presidente da Associação Nacional de Municípios, Manuel Machado, tem sido a voz mais audível contra a intenção de fusão destas empresas num sistema multimunicipal no âmbito do grupo Águas de Portugal (AdP). A posição de Manuel Machado é correta: o projeto-lei do governo não é mais do que o caminho para a privatização, em bolsa ou por concessões de 25 ou 30 anos, dos serviços de captação e distribuição de água sob a alçada da AdP.
A água é um bem público essencial. Mais do que isso: é um direito que deve ser garantido universalmente e com qualidade, o que só pode acontecer no âmbito de uma gestão pública. Por isso, os serviços de captação e distribuição de água devem ser geridos pelos municípios e estar sob o mais rígido controlo público, sob pena de a respetiva missão social ser entregue a quem procura exclusivamente o lucro. Quando a água é um negócio, as receitas são exclusivamente as tarifas praticadas junto dos consumidores, graças às quais se deve recuperar integralmente os custos, o que significa que, para os acionistas dos consórcios privados que adquirem serviços como estes, só há dividendos, e que os consumidores têm de enfrentar aumentos fortíssimos do preço da água.
Tem ainda razão Manuel Machado quando afirma que o projeto-lei do governo corresponde ao esbulho de bens municipais. De facto, as infraestruturas, equipamentos e recursos humanos das AM e também, dada a possibilidade de verticalização, das Águas de Coimbra (AC), poderão ser incorporados nos ativos da AdP, o que significa que os investimentos realizados nos municípios, com dinheiros públicos, serão entregues de mão beijada ao privado. Devido ao imperativo do lucro, a manutenção destas infraestruturas e equipamentos passará para segundo plano, o que se refletirá na perda de qualidade da água. Os trabalhadores enfrentarão, com toda a certeza, problemas laborais. No final das concessões, reverterá, provavelmente, de novo para o poder local a manutenção das infraestruturas, que aproveitaram a algum negócio privado. Os custos serão suportados pelos contribuintes, os quais pagarão duplamente a água que consomem.
As razões apontadas pelo governo para a fusão dos sistemas multimunicipais, como a criação de uma economia de escala e as pretensas boas intenções sobre uma solidariedade do litoral com o interior, que se refletiria no preço da água a cobrar ao consumidor, não passam de uma estratégia para criar uma dimensão mais apetecível para concessões a privados e de um logro (bem podem os consumidores do interior esperar por uma redução da fatura de água!). A fusão é imposta aos municípios não somente através de uma chantagem sobre a captação ou não captação de fundos comunitários, mas por via da estrutura acionista das empresas, em que o grupo AdP detém 51% contra os 49% dos municípios agregados. Mesmo que a estes, por determinação legal, caiba a última decisão, é sempre fácil dividir para reinar. Anuncia-se, pois, um processo que urge travar a todo o custo.
Todavia, é preciso também contar a sua história. O processo não é novo. A intenção de agregar sistemas municipais e multimunicipais de águas e saneamento data de meados dos anos 90, do governo PS de António Guterres, em que era Ministro do Ambiente José Sócrates. Não se trata de demonizar mais do que a conta esta figura política, mas foi no seu mandato enquanto Primeiro-Ministro, na primeira década de 2000, que os processos de agregação se aceleraram e estenderam à quase totalidade dos municípios do país, com a AdP a posicionar-se como acionista maioritário dos sistemas de água e saneamento. O Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais do Baixo Mondego-Bairrada foi criado em julho de 2004 e concessionado à AM, empresa do grupo AdP, por 35 anos. No ano anterior, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Coimbra (SMASC) tinham sido convertidos em empresa municipal, a Águas de Coimbra (AC).
O Bloco de Esquerda contestou esta dinâmica, a nível local e nacional, denunciando-a como o que realmente era: a transformação da água num negócio. Se é verdade que as empresas municipais podem apresentar vantagens em termos de flexibilidade de gestão, escapam facilmente ao controlo dos poderes públicos, tornando-se lugares apetecíveis para a colocação de boys partidários. Não é por acaso que a Presidência da AC é sucessivamente ocupada pelo líder distrital ou concelhio do partido que reina, ao mesmo tempo, sobre os Paços do Concelho, tal como acontece atualmente com Pedro Coimbra (PS) ou, nos mandatos anteriores, com Marcelo Nuno (PSD), o qual chegou a contestar publicamente, em 2005, a redução, imposta pela Assembleia Municipal, do seu salário a (apenas!) 80% do salário do Presidente da Câmara. Em 2006, o Tribunal de Contas denunciava irregularidades cometidas pelos gestores da AC, a qual se afastou cada vez mais do controlo dos poderes municipais eleitos, por determinações legais e alterações estatutárias. Por causa destes apetites e de semelhantes faltas de vergonha, o BE defendeu, na Assembleia Municipal, a redução do salário do Presidente da AC ao equivalente a uma direção de serviços (como seriam os SMASC), sem despesas de representação. Quanto ao Movimento Cidadãos por Coimbra, no início do atual mandato, defendemos critérios exclusivamente de competência técnica para a ocupação deste cargo, em detrimento do nepotismo político e dos negócios que a água, pelos vistos, torna férteis.
Quando o governo PS, de José Sócrates, impulsiona o processo de privatização das águas por meio da AdP, o município de Coimbra era governado por um executivo PSD-CDS/PP-PPM, liderado por Carlos Encarnação. No final do terceiro mandato deste Presidente de Câmara, vem a lume, por denúncia minha, em campanha eleitoral enquanto candidata à Câmara pelo Bloco de Esquerda, um primeiro protocolo de fusão da Águas do Mondego com a SimLis e a agregação de um conjunto de municípios num “bolo” a entregar à AdP, em tudo semelhante à estratégia que agora é seguida pelo governo PSD. A minuta deste protocolo fora aprovada em reunião de câmara por unanimidade das forças ali representadas (PSD, PS, CDU) em 27/07/2009 e o registo da referida aprovação pode ler-se online no relatório e contas da Águas do Mondego relativo a 2009. Felizmente, o processo não teve mais consequências.
No mandato seguinte, em que Carlos Encarnação cede a Câmara a Barbosa de Melo, o protocolo de privatização, cuja existência o primeiro negara, é apresentado publicamente, para, algum tempo depois, o PSD encetar a contestação do processo que desencadeara localmente por pressão do governo e que antes merecera aprovação unânime dos partidos com assento na câmara. Se o BE se manteve constante nas suas posições, tendo feito aprovar por unanimidade uma moção contra a privatização da água, na Assembleia Municipal de Coimbra, em 27 de Fevereiro de 2013, a mudança de rumo de PS e PSD da privatização da água para a sua recusa, embora de sentido positivo, deixa “a pulga atrás da orelha”. Por um lado, a privatização tem sido a opção política de ambos os partidos enquanto governo. Por outro lado, a nível local, ambos aprovaram, em 2009, o protocolo que mencionei acima, obedientes a uma estratégia governativa em que o centrão não se distingue. Terá a inversão de rota alguma coisa a ver com o receio de perda do feudo partidário que constitui a empresa Águas de Coimbra, por via da verticalização incluída no projeto de lei do governo? Temerão estes partidos pelos negócios dos seus boys? Importa que as razões que agora movem os representantes locais de PS e PSD contra a privatização da água sejam as boas e óbvias razões com que enchem a boca. Importa que, com as trocas de governos centrais e municipais, não mudem apenas as moscas, mantendo-se as estratégias políticas lesivas do interesse das populações. Importa, a nível local, e nomeadamente na gestão da AC, dar o exemplo. O Bloco de Esquerda estará neste combate pela causa justa que inquestionavelmente é. Por uma água pública que nunca venha a ser – ou que deixe de ser – o negócio de alguém.