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Acerca de Linhas Vermelhas

A primeira coisa de que me lembrei ao ler o título deste novo livro do José Manuel Pureza – Linhas vermelhas – não foi, curiosamente, nenhuma daquelas que talvez fossem de esperar. Lembrei-me de um filme, e ainda por cima de um filme de guerra: o The Thin Red Line do Terence Malick. Mas como bem sabe quem conhece o percurso pessoal, político e académico do José Manuel Pureza, se há coisa pela qual ele se tem batido incondicionalmente é pela paz. Será então disparatada esta minha associação entre o título do seu livro e um filme de guerra? Eu não sou uma pessoa supersticiosa, mas sempre tive a convicção de que as associações que fazemos nunca são fortuitas. Claro está que entre o livro do José Manuel Pureza e o filme do Malick existe uma ligeira coincidência no título, mas há ainda mais do que isso. The Thin Red Line, tal como qualquer outro da meia dúzia de filmes realizados pelo Malick, é denso e complexo, e merece que se passe com ele tanto tempo quanto estamos habituados a passar com alguns dos livros de que mais gostamos. É, em suma, um filme constituído por várias camadas quem possibilitam várias leituras. E se dedicarmos tempo suficiente a ler estas camadas, chegaremos a perceber que se trata do filme de guerra mais pacifista que existe – porque se nele existe luta, essa luta é, em última instância, pela paz. E por isso tenho a certeza que o José Manuel Pureza gosta deste filme – portanto esta associação não é assim tão inaudita.

Tal como os filmes do Malick, Linhas vermelhas é também um livro de várias camadas, e isto logo desde a sua génese, pois tal como o José Manuel Pureza terá naturalmente ocasião de vos explicar melhor do que eu, a sua elaboração advém de um material que estava, por assim dizer, disperso: cerca de duas centenas de crónicas de opinião que foram publicadas semanalmente ao longo de 4 anos no jornal Diário de Notícias. Mas em vez de se limitar à facilidade de compilar directamente esse material neste livro, o José Manuel Pureza propôs-se a um desafio muito mais estimulante: retrabalhou os textos, por vezes de forma radical, incluindo considerações da actualidade que não estavam originalmente nessas crónicas, apresentando-nos um ensaio político com uma lucidez muito valiosa e muito importante nos dias que correm. De facto, as suas reflexões sobre a condução política que tem sido levada a cabo por aqueles que nos têm governado, principalmente no que diz respeito à forma drástica como têm vindo a liquidar a noção de direito social e a embargar de forma irresoluta o futuro do nosso país, são de extrema relevância nas nossas discussões actuais. O conceito que José Manuel Pureza avança no subtítulo deste livro – “crise-como-política” – é só por si mesmo um programa, pois nele está encerrado o infeliz paradigma que os últimos governos têm imposto no nosso panorama mental, para nos convencermos de que devemos sacrificar-nos para pagar dívidas que foram geradas pelas suas políticas irresponsáveis, ao mesmo tempo que resolvem condenar publicamente todos aqueles que tentam procurar, de forma democrática, soluções alternativas para os seus problemas, que são os mesmos que nos afligem. Mas pior do que isso, José Manuel Pureza conclui que nunca tivemos de facto, em Portugal, um estado de bem-estar consolidado nem uma cultura enraizada de direitos sociais como suporte indispensável dos direitos civis e políticos, situação ao mesmo tempo alarmante mas também bastante lógica, por ser fruto de várias condicionantes históricas sobre as quais o livro também disserta. Assim, e por tudo isto, é importante ler o livro do José Manuel Pureza e reflectir sobre os temas que propõe, tal como é importante pensar também nas alternativas possíveis a este panorama.

Diz Italo Calvino que “toda a História não é mais do que uma infinita catástrofe da qual tentamos sair o melhor possível”, e a primeira condição para tal é ter a lucidez suficiente para observar os problemas, analisá-los com profundidade, e lutar pela transformação profunda dos mecanismos que as concebem. Em Linhas Vermelhas José Manuel Pureza postula que a luta por essas linhas inultrapassáveis, sempre mais avançadas, está no coração da identidade histórica da esquerda. E não é possível deixar de concordar inteiramente com ele.