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Terminou o abate, e agora?

Finalmente entrou em pleno vigor, a lei 27/2016, que proíbe o abate de animais saudáveis naqueles que foram os Canis Municipais, agora convertidos em Centros de Recolha Oficial. Agora é chegado o momento da verdade: os municípios adaptaram-se, ou não?

Vozes a favor, vozes contra, a verdade é que o Poder Central (estado), com a aprovação desta lei, deu um sinal claro, um cartão vermelho, como dizia Jorge Monteiro da “Associação Gatos Urbanos”.

Adiar a aplicação de uma lei que previu um período transitório de um ano, para os municípios criarem as condições técnicas para realizarem a esterilização e incentivarem a adoção, e de dois anos para acabar com os abates, demonstrando sensibilidade para a necessidade de adaptação a um conjunto de exigências e competências em matéria de bem-estar animal, cuja responsabilidade caiu na esfera do poder local, só passaria a ideia de permissividade, fraqueza, laxismo e de pouca importância dada à matéria.

Agora vão começar os ais, as queixas que não vai ser possível, que não há verbas. Já esperamos isso. Agora vão começar a dizer que não há espaço, estão lotados, e que isso é o resultado da entrada em vigor da lei 27/2016. Já contamos com isso.

Aliás, senti hoje mesmo essa realidade. Confrontada com a necessidade de entregar um animal que se encontrava deitado no meio da rua, e depois de o ter levado para o CRAFF na Figueira da Foz, a resposta que recebi foi mesmo essa: estamos lotados, fique a senhora com ele!

Sendo a recolha uma atribuição do município, chegámos ao ridículo de quererem que os munícipes, que atuam de boa fé e denunciam a presença de um animal perdido ou abandonado, assumam a guarda do mesmo!

Não tarda nada, são os munícipes que têm de, eles mesmos, se substituir ao poder local noutras matérias, como o abastecimento de água às populações, ou assegurar a segurança, porque não?!

Ouvi algo como: estamos a rebentar pelas costuras e o Governo não quer saber, faz ouvidos moucos!

Agora vai ser a escolha entre Não Matarás e o Deixarás Morrer… é que, não havendo possibilidade de abater, porque não existe verdadeiramente interesse pelo bem-estar dos animais, esses a quem alterámos significativamente a realidade com a construção das cidades, das polis, torna-se tentador não socorrer. 

Isso que fique com as associações, esses a quem não falta a boa vontade e faltam apoios públicos; que fiquem esses com as atribuições e deveres do município, de recolher, esterilizar e devolver às colónias os gatos assilvestrados, e de socorrer os que estão em perigo. Mas não só com os gatos, também para os cães. 

Sim, porque torna-se mais fácil atribuir as responsabilidades, de falta de resposta, à entrada em vigor de uma lei que proíbe os abates. Devíamos ter começado a esterilizar há dois anos atrás e só depois proibir os abates, dizem uns. 

Pois, mas a lei esteve bem quando permitiu aos municípios se adaptarem tecnicamente para iniciar a esterilização, tendo permitido que o fizessem no prazo de um ano… estabeleceu o prazo de dois anos para os abates, não o contrário.

Claro, mas agora que é impossível abater, vão andar matilhas de cães perigosos na rua, vão aumentar os riscos para a população. Esses são os Velhos do Restelo a falar. O alarmismo. Falta de vontade, acrescento eu.

Os animais esterilizados alteram o comportamento, deixam de ter de lutar pelo território, começam a ganhar mais saúde, o pelo ganha brilho e começam a ser mais bem tratados pela população.

É que nos esquecemos que os animais são património vivo, desempenham um papel importantíssimo no controlo de pragas, como é o caso dos gatos, que vão controlando os ratos.

Recordemos o Papa Gregório IX que com a sua bula papal Vox In Rama acabou por lançar a inquisição no encalce dos gatos, que segundo ele, seriam usados em rituais hereges. Não demorou muito para que os gatos fossem exterminados em massa. Como consequência, e porque deixaram de existir gatos que controlasse a população de ratos, desenvolveu-se a peste negra. Cá se fazem, cá se pagam?

Em Istambul, na Turquia, a cidade é conhecida como a cidade dos gatos, recebendo inclusive turistas que desejam conhecer aquela cidade tão especial.

Para aqueles habitantes, é normal conviverem com os gatos, que todos acarinham e protegem e que não pertencem a ninguém, são espíritos livres. Não são animais errantes, eles sabem muito bem onde vão e o que querem. São livres e os seus habitantes convivem muito bem com isso.

Mas entre nós não é assim, e alterámos tanto os hábitos dos animais, que os mesmos não podem andar livremente pela rua. Não admitimos isso. Mas também não admitimos dar-lhes condições condignas, nomeadamente protegê-los da fome, do frio, dos ataques, da doença. Não, protegemo-nos deles, dessas ameaças a monte, desse flagelo! Não nos governamos nem nos deixamos governar, alguém disse.

É com pesar que assisto a esta luta de poder, desta altercação entre uns e outros, sobre quem compete cuidar… não deveria ser responsabilidade de todos?

Continuamos a abandonar animais, é uma realidade. 

Não, os municípios não são os responsáveis por esse problema, mas podem e devem fazer parte da solução.

A colocação do chip nos animais nascidos a partir de 2008, é uma obrigatoriedade legal. E quem controla? Não devíamos criar um censo municipal, anual, indo de porta em porta, e fazer esse levantamento? Talvez assim contribuíssemos para a diminuição dos abandonos.

Ainda que não exista um estudo que sustente esta visão, não podemos ignorar que razões de ordem financeira estão na origem de muitos abandonos. Se o animal for esterilizado, acabamos com um conjunto alargado de miséria animal.

O apoio na esterilização dos animais de famílias carenciadas, é fundamental, tal como os cuidados básicos. Será que os municípios não podem adotar medidas, como por exemplo, a atribuição de um cheque veterinário?

É uma questão de escolha. 

Como queremos ser vistos pelas gerações futuras? Por aqueles que escolheram matar ou como aqueles que deixaram morrer? 

E que tal se for como aqueles que decidiram salvar? 

Vale a pena deixar um legado de vida para o futuro, vamos a isso?