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Violência doméstica: o machismo que mata, todos os dias.

A violência doméstica tem estado na ordem do dia, devido a números aterradores: mais de 30 mulheres mortas pelos companheiros em Portugal no presente ano. A sociedade começa a preocupar-se com um flagelo que, porém, ainda não suscita a intervenção que merece. De facto, provoca mais alarme um surto de legionella do que esta sucessão de mortes, a ponta do iceberg de um fenómeno do qual dificilmente se conhecerá a amplitude. Inúmeras mulheres são quotidianamente agredidas, violentadas física e psicologicamente, humilhadas, ou vivem em terror nas próprias casas, ameaçadas pelos homens que um dia amaram e com os quais acreditaram encontrar a felicidade.
Um surto de legionella provoca mais alarme do que a violência doméstica, porque as vítimas são, sobretudo, mulheres. Dizia um juiz espanhol que, se o mesmo número de taxistas ou empresários morresse assim, por atacado, decerto haveria uma movimentação social. Isto não acontece, porque se trata de mulheres. Não admira, quando se fala no tema, a agilidade das vozes que de imediato replicam: também há mulheres que batem nos homens. Não importa que sejam elas, de longe, as principais vítimas. Não há o alarme necessário, porque a nossa sociedade recusa olhar-se no espelho. Porque a nossa sociedade não vê e não quer ver o machismo fortíssimo ainda inscrito dominantemente nas nossas mentalidades. É este machismo que mata e martiriza mulheres, em Portugal, todos os dias. E é este machismo, nas suas formas abertas e insidiosas, que urge combater.
É machista uma sociedade que não combate ativamente a desigualdade que prevalece entre homens e mulheres e que as prende em situações de dependência económica. É machista a sociedade que desculpa a violência doméstica com o velho “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, como se todos discutissem por igual e não fosse a mulher que apanhasse; como se a violência doméstica fosse uma coisa de pobres, e não atravessasse todas as classes sociais. E se é verdade que a austeridade, o desemprego, a destruição dos serviços de apoio social aumentam a pressão sobre as famílias, são as mulheres aquelas que mais sofrem os seus efeitos: ou porque, sem recursos, ficam sujeitas aos agressores, ou porque estes descarregam nelas o orgulho masculino ferido, quando perdem o emprego e são elas que trazem o dinheiro para casa.
É machista a sociedade que, por um lado, olha como um herói viril um homem que escolhe companheiras sucessivas ou simultâneas; é machista a sociedade que, por outro lado, força a mulher, com censuras abertas ou veladas, a permanecer numa união infeliz, por causa dos filhos ou da sua reputação. É machista a sociedade que apelida os crimes que vitimam as mulheres de “crimes passionais”, branqueando a ação dos homens como se a “paixão” legitimasse a violência e o assassinato. É machista a sociedade que, nas entrelinhas deste discurso, continua a ver as mulheres como pertença do homem, culpabilizando-as quando ousam decidir o seu próprio destino.
É machista a sociedade que educa as meninas com conjuntos de panelas e eletrodomésticos em miniatura, com bonecas que imitam bebés ou, pelo contrário, manequins de corpos impossíveis. É machista a sociedade que, assim, inculca nas próprias mulheres a forma de se pensar a si mesmas que convém ao poder masculino. Mas é machista também a sociedade que amordaça os homens que querem ser dignos quando, desde meninos, lhes dá a violência dos Action-Men como exemplo e lhes diz: “homem não chora”. É machista a sociedade que produz e reproduz, desta forma, homens violentos que não sabem ser doutra maneira, que jamais procurarão a via da conciliação com as mulheres numa relação de iguais.
É machista, finalmente, a sociedade que olha para o lado e não denuncia a violência sofrida pela vizinha, ou as agressões cometidas pelo colega de trabalho. É responsável pela violência e por tantas mortes aquele ou aquela que, na reportagem que se segue ao assassinato, se surpreende com a tragédia de uma família tão “normal”, com o crime de um homem tão “normal”, ou que chega a dizer, como no caso de Soure, “a mulher, ainda se entende, mas as filhas…” Porque a mulher, na nossa sociedade machista, é sempre culpada, mesmo quando morre e o homem, agressor sistemático, é sempre normal até ao tresloucado ato de ciúmes provocado, afinal, por alguma herdeira da tentadora Eva…
A lei que tornou a violência doméstica crime público permite-nos “meter a colher entre marido e mulher”, quando é necessário fazê-lo e quando a vítima, enfraquecida por anos de humilhação e terror, é incapaz de denunciar. À polícia e à justiça cabe garantir a segurança das vítimas. Ao Estado cabe assegurar que estas têm direito a uma vida protegida e digna no espaço que é delas e que, afinal, foi invadido por quem as violentou. Tem havido progressos: na consciencialização social, na especialização dos profissionais das polícias e da justiça, no apoio social. Falta ainda, porém, o fundamental: o combate contra a violência doméstica interpela-nos a todos e a todas como um combate quotidiano contra o machismo na forma de pensar, falar, agir, na vida privada como nas instituições. Porque o machismo mata, o machismo mata, todos os dias. E é imperioso que deixe de matar.
 

Catarina Martins - Membro da Coordenadora Concelhia do Bloco de Esquerda/Coimbra e Deputada na Assembleia Municipal de Coimbra, eleita pelo Movimento Cidadãos por Coimbra