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Sente-me, ouve-me, vê-me

Uma mulher, de 26 anos, vai a uma discoteca e dança na pista. Nada de mais irrelevante, pode pensar-se. Não há estória, não há surpresa, não há nada de interessante. Mas o ‘nada de interessante’ foi usado como prova atenuante num caso de violação. O acórdão da Relação do Porto indicia que esta prática é interessante o suficiente para atenuar a pena de dois homens que a violaram quando estava inconsciente. Tudo serviu de atenuante: a dança, o álcool, o já se conhecerem. Tudo jogou em desfavor da vítima e para atenuar o comportamento dos agressores. Os factos são simples: dois homens violaram uma mulher inconsciente e ficaram impunes. Essa é, infelizmente, a regra nos casos de violação em Portugal, não a excepção.

Esta semana as ruas de várias cidades encheram-se de gente. Gente que marchou, gritou, esteve e quis mostrar que a Maria não é apenas mais uma. Somos todas Maria. Mexeram com a Maria, mexeram connosco. Não é possível acreditar num Estado de direito se a justiça não o confirma. A indignação nas vozes que encheram as ruas de Portugal é um enorme basta!

Não são as saias curtas, ou os calções da Maria, não são os decotes, não é a bebida, não é a sedução, não é a dança, é a impunidade. É o achar-se sistematicamente que as mulheres não têm cabeça ou corpo próprios. Que tudo nelas é comandado e é chamariz. Os agressores só o são se forem verdadeiros criminosos. Se não tiverem registo anterior são, por norma, considerados gente de boa conduta e, em última instância, inocentes. Mas na vida normal isto não faz sentido nenhum. Todos os segundos ou terceiros crimes tiveram de ser consequência de um primeiro.

O que se passou com a Maria é um espelho da sociedade em que ainda vivemos em várias latitudes. No Brasil, o movimento #EleNão, liderado por mulheres, é também um basta à desconsideração das mulheres como uma sub-espécie, um adereço, um mal menor. Essa ideia impregnada de que tudo se pode dizer e fazer e de que exigir um mínimo de dignidade é um abuso. Essa ideia absurda de que não calar o destrato é um exagero.

Em 2015, numa visita a Serralves, havia uma exposição da Helena Almeida. Creio que muitas de nós aprenderam a pensar o seu corpo pela forma que ela nos ensinava com o seu. A Helena Almeida deixou-nos e eu não consigo deixar de pensar no quanto ela foi imprescindível para várias gerações de mulheres e de homens que se querem livres. A tristeza da morte da Helena Almeida não tem ligação nenhuma com o que escrevi acima, mas é-me impossível não contrapor essa liberdade à opressão que ainda vivemos. Essa forma de estar na vida ao silêncio e recato que nos querem impôr. Sim, o nosso corpo é nosso, é a nossa vida, como o corpo da Helena Almeida era a sua arte e a sua arte o seu corpo. Entre muitos inesquecíveis trabalhos, o “Sente-me, ouve-me, vê-me”, de 1979-1980 é um tratado. Essa comunicação, essa respiração conjunta, esse modo de estar. Seria tão mais fácil se assim comunicássemos sempre, mesmo que apenas pela respiração. Sem submissas e mandões, só entre iguais.

Publicado no “Diário de Notícias” - 30 de setembro de 2018