Share |

Regresso das crianças ao jardim de infância? Não, obrigado!

Não sou educador de infância mas conheço bem as dinâmicas de trabalho e interação socioeducativa próprias de um grupo de crianças, dos 3 aos 6 anos de idade, num jardim de infância. Cinco horas diárias de intensas e múltiplas interações físicas e socioafetivas entre educadora e assistente operacional com as crianças e, entre pares. Estabelecem-se dinâmicas relacionais de grande intensidade afetiva, em que o toque, o abraço, o colo, a carícia, são uma constante. Como constante é também a necessidade de limpar, cuidar, prestar cuidados de higiene às crianças, nas mais diversas situações, nomeadamente nas idas à casa de banho.
Na sala de jardim de infância não há aulas, com crianças sentadas nos seus respetivos lugares, distanciadas fisicamente, a ver, ouvir e absorver os conteúdos de aprendizagem planificados pelos docentes. Na sala do pré-escolar as atividades fervilham, as crianças exploram, experimentam, constroem, brincam, e a brincar desenvolvem aprendizagens e novas competências.
Neste contexto de interação social e de aprendizagem cooperada, pensar que é possível estabelecer o mínimo distanciamento físico é, no mínimo, surreal. Como dividir 20 a 25 crianças no espaço de uma sala? Divide-se a sala com uma linha colocando metade de um lado com a educadora e metade do outro com a assistente operacional? Qual o espaço com que ficam? Como se impede crianças de se tocarem, de se abraçarem? Como se explica a crianças desta idade que não possam voltar a dar um abraço à educadora ou à assistente operacional ou a procurar uma carícia, um conforto? Como irão reagir as crianças quando educadora e assistente operacional lhes apareçam fisicamente distanciadas, com máscaras e, eventualmente viseiras? Compreenderão as crianças uma situação tão surreal e fantasmagórica para elas? Será esta uma experiência educativa e emocionalmente positiva?
Nos jardins de infância, com várias salas, como confinar os contactos entre crianças e gerir as atividades e as brincadeiras nos espaços exteriores? E nos refeitórios, como se vai gerir o momento das refeições, com dezenas de crianças e os adultos que as apoiam na refeição, num espaço confinado. Haverá condições para higienizar de forma assídua e constante, como se exige, as casas de banho partilhadas por dezenas de crianças?
Por todas estas razões, e muitas mais que poderíamos continuar a enumerar, os jardins de infância são, no atual contexto de pandemia, um local explosivo que potencia as cadeias de propagação do vírus.
Argumentam alguns que há que voltar à normalidade social e económica e retomar o trabalho. É certo que não podemos ficar ad aeternum confinados. É igualmente certo que as medidas de confinamento social tiveram por objetivo permitir gerir a resposta do SNS aos casos mais graves da epidemia. Mas, justamente por isso, é legítimo que nos interroguemos se os ganhos sociais e económicos de uma reabertura prematura dos jardins de infância, por menos de um mês, justificam a decisão.
Em defesa da reabertura do pré-escolar, tem vindo a ser afirmado que as crianças mais novas são menos vulneráveis à covid-19 podendo não manifestar sintomas. Porém, manifestando-se assintomáticas, as crianças podem transformar-se num veículo de proliferação das cadeias de contágio. Sem esquecer que são muitas as educadoras e as assistentes operacionais que se encontram em situação de risco, nomeadamente por fatores etários. Para além disso as crianças regressam a casa e estarão em contacto com pais, avós, familiares. Outro dos argumentos invocados prende-se com a necessidade dos pais regressarem ao trabalho. É, sem dúvida, um argumento de peso. Porém perguntamos e se a reabertura do pré-escolar, por menos de um mês, deitar a perder todo o esforço de confinamento social e de controlo da pandemia? Uma reabertura prematura do Pré-escolar não poderá vir a contribuir para desencadear uma segunda vaga epidemiológica? Esta, a acontecer, não irá agravar a situação económica e social, correndo o risco de fazer colapsar o SNS, pondo em causa a sua capacidade de resposta? Valerá a pena o risco?
Dir-nos-ão, alguns, que há que ter fé. Responderemos que a fé de pouco vale perante uma pandemia. O que nos dizem os especialistas de epidemiologia e virologia? Valerá a pena arriscar por tão pouco tempo, e correr o elevado risco de deitar tudo a perder?
Será que as crianças, jovens, docentes, assistentes operacionais, pessoal administrativo, da Educação Pré-escolar e do Ensino Secundário vão ser usadas como cobaias experimentais?
Reabertura do Pré-escolar? Não, obrigado!
Publicado em Esquerda.net - 9 de maio de 2020