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"Noite Saudável das Cidades do Centro de Portugal"

No passado dia 5 de abril, durante o Encontro sobre "Noite Saudável das Cidades do Centro de Portugal", que decorreu no Audtório da Fundação Bissaya Barreto, José João Lucas fez a seguinte intervenção: 

"Quero, em primeiro lugar, felicitar a organização desta iniciativa, bem como os patrocinadores e todas as pessoas e entidades que se empenharam na sua preparação e concretização. Parece-me ser evidente a importância de colóquios deste tipo, em que a transversalidade dos saberes e dos olhares é condição essencial para uma abordagem mais fundamentada destes fenómenos da violência e de sinistralidade, associadas aos consumos de substâncias perigosas, de que destaco o álcool, em contexto de convívio e de diversão juvenis, predominantemente na noite, mas não só.

Há quem aborde o tema pelo lado da saúde pessoal e pública, pelo lado da segurança rodoviária, pelo lado da educação familiar e escolar, pelo lado jurídico-penal ou ainda pelo lado turístico…

Proponho uma abordagem pelo lado da cultura, no sentido de que a vida das sociedades transporta cargas imateriais que condicionam as atuações dos indivíduos e dos grupos em que se inserem. Interrogo-me sobre os hábitos que têm vindo a instituir-se e a consolidar-se, ao longo de séculos, na nossa cidade no campo da diversão, designadamente no meio académico. Interrogo-me sobre a substância, as origens e a evolução dos rituais de iniciação e de integração nos grupos estudantis e nos diversos patamares em que eles se estratificam. Enfim, interrogo-me sobre os preconceitos que se atualizam e se reforçam nesses exercícios festivos e sobre a relação entre estes preconceitos e as práticas de violência física e psicológica que se assumem nesses rituais e que têm tendência a replicar-se noutros contextos.

Todos sabemos que estas práticas exercem um enorme fascínio junto de muitos e muitas jovens dos meios académicos coimbrões, quer os que se iniciam, quer os que controlam essa iniciação. Muitos perguntarão e responderão, de seguida: “Que mal há nisso? Na realidade, toda a gente se diverte… mais álcool, menos álcool, tudo é uma grande festa!!!”

Acontece que, observando mais fundo, estas práticas de alcoolização generalizada estão associadas a cenários de exercício, mesmo que simulado, de violências autoritárias de uns/umas sobre outros/as. Quem viveu em meios rurais, há umas décadas atrás, em que estas práticas ancestrais faziam parte dos quotidianos das comunidades, recordar-se-á que a embriaguez era uma prerrogativa marcadamente masculina, a quem era tolerada tal prática, desculpada frequentemente como forma de atenuar o cansaço de trabalhos fisicamente muito exigentes ou como forma de diversão no final da semana em que se recebiam as jornas. Mulheres que se embebedassem eram muito mais estigmatizadas e até ostracizadas do que os seus maridos. A embriaguez até era utilizada como desculpabilização das violências diversas dos homens sobre as mulheres e as crianças.

Passaram estes anos todos, alteraram-se os contextos, aumentou o nível educacional dos e das protagonistas e vemos, nas ruas e praças da cidade, cerimónias de subjugação ritual duns/umas sobre outros/as, com discursos pretensamente humorados e frequentemente cheios de clichés machistas e sexistas, de linguagem alusiva a atuações e práticas sexuais carregadas de simbolismos agressivos, assumidos agora quer por rapazes quer por raparigas. Estes atos violentos – alguns dirão, consentidos por todos e todas – praticados em condições de elevadas concentrações de álcool, aqui justificadas pela necessidade de criar ambientes altamente desinibidos, serão indutores de práticas futuras similares, no que diz respeito quer aos consumos, quer aos modos de condução automóvel, quer às práticas relacionais e especificamente sexuais entre jovens.

Quando aqui refletimos sobre as maneiras de prevenir estas situações, não podemos deixar de denunciar os ambientes de alcoolização de grupos estudantis e a transformação das festas académicas em atividades promocionais do negócio das bebidas alcoólicas, com enorme cumplicidade das autoridades universitárias. Igualmente, não achamos aceitável, para quem se preocupa com a educação cívica das novas gerações, que se seja condescendente com a produção irresponsável de lixo de todo o tipo pelas ruas da cidade, com as quantidades enormes de carrinhos de supermercado e de caixotes do lixo a serem danificados e atirados ao rio, com a criação e alimentação duma imagem turística da juventude de Coimbra, desbragada, em estado de inconsciência e de irresponsabilidade cívica, reprodutora de comportamentos de elevado risco para a saúde e bem-estar dos próprios e dos outros.

Sei que, ao denunciar este ambiente, corro o risco de fazer generalizações precipitadas. Quero acentuar que, ao denunciar estas práticas pouco recomendáveis, não deixo de valorizar as inúmeras iniciativas culturais, desportivas e cívicas que a academia de Coimbra promove regularmente, envolvendo de forma muito ativa públicos muito vastos e contribuindo, assim, para o enriquecimento cultural da cidade. Talvez já haja estudos que ajudem a perceber a dimensão e o verdadeiro impacto daqueles fenómenos praxísticos na nossa comunidade, em termos de saúde pública, de salubridade urbana, de violência sexual, de sinistralidade rodoviária, etc. Se não os há, de forma mais focada, é urgente que se promovam, designadamente avaliando os preconceitos ideológicos que sustentam tais práticas. A sua replicação recente em muitas outras escolas superiores, em todo o país, e a sua divulgação folclorizada levam os e as jovens a interiorizá-las, de modo frequentemente acrítico, instituindo e disseminando práticas culturais que, longe de promoverem uma socialização sem preconceitos, tendem a reproduzi-los, a naturalizá-los e a perpetuá-los.

Um grande debate é preciso, pois!